Leia abaixo o teor da entrevista:
Qual a importância do Consea para a população?
Maria Emilia Pacheco – O Consea é um dos pilares da concretização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), criado em 2006 para que o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, formule e implemente políticas, planos, programas e ações para assegurar o direito humano à alimentação adequada. Ele não só aplica este princípio da participação social, como também é o espaço por excelência de monitoramento e formulação de propostas para a política de alimentos.
E como se explica que o governo atual queira extinguí-lo?
Maria Emilia Pacheco – Não dá para explicar o que está se passando na política de segurança alimentar no atual governo só analisando o ângulo da participação social. Isso é fundamental, claro, e devo dizer que o que mais chamou a atenção das visitas de comitivas internacionais que nós fomos recebendo durante todos estes anos foi, justamente, a composição do Consea: dois terços da sociedade e um terço do governo, sendo a presidência da sociedade civil. O Brasil inspirou vários países. Isto é uma parte da questão, mas ela é mais complicada, porque há um desmonte muito profundo, uma desestruturação da política de segurança alimentar.
Explica melhor, por favor.
Maria Emilia Pacheco – Não dá para entender a política de segurança alimentar e nutricional se não estivermos atentos como ela interage com muitas outras políticas. O Ministério da Agricultura, no governo Bolsonaro, passa a ser um superministério, o que reafirma, de forma categórica, a hegemonia do agronegócio. Isto impacta a vida das populações, porque é para este ministério também que se deslocou a atribuição de cuidar dos indígenas e dos quilombolas. É uma negação da existência desses povos, como a nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) acaba de dizer . Portanto, é preciso analisar de forma mais profunda o que está acontecendo com a política indigenista, ambiental, relacionada à segurança alimentar. Se formos analisando cada aspecto desses no diálogo com a política ambiental vamos ver que a política de segurança alimentar e nutricional está desmoronada.
Maria Emilia Pacheco – Sim, era. É claro que tem contradições de posicionamentos, porque não tivemos mudanças fundamentais como a Reforma Agrária, tivemos a votação do Código Ambiental, que atende bastante aos ruralistas, e já havia, no governo de Dilma Roussef, medidas em debate sobre mudanças do Código de Mineração. Ao mesmo tempo, não conseguimos cumprir algumas iniciativas para checar a regulação da indústria de alimentos, o aumento do consumo de super processados, que sempre foi uma das tônicas do nosso debate no ultimo período. Mas foi no Consea que debatemos a proposta da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, garantimos essa proposta que se transformou em realidade em 2012. Teve um papel significativo também a Marcha das Margaridas , onde a presidente Dilma assumiu o compromisso com as mulheres do campo. Tivemos ainda o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, pelo qual estamos ainda em luta.
E tem agora um projeto de lei avassalador que é, justamente, paraflexibilizar a compra de agrotóxicos…
Maria Emilia Pacheco – Sim, nossa ideia inicial, na 5ª Conferência Internacional, era ter um programa de redução de agrotóxicos, mas não conseguimos. A ideia, ali, era pelo menos não ter mais uma subsídios para a produção de agrotóxicos. Enquanto isso, crescia no Congresso o apoio a este Projeto chamado de Projeto do Veneno. Foi então que os movimentos sociais elaboraram o programa que já estava bem definido pelos participantes da Conferência. Mas foi um ponto que teve muita tensão dentro do próprio Consea, houve muitas mesas de debates.
Por que a tensão no próprio Consea?
Maria Emilia Pacheco – Porque a produção dominante do país é de larga escala, é um país que se tornou exportador de comoditties agrícolas e minerais. A tensão, é claro, não ocorreu na parte da sociedade civil, mas não se esqueça que o órgão tem também a participação do governo. Mas foi no Consea que conseguimos também reativar o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), do tempo do Governo Vargas, com uma iniciativa inédita na história: compras públicas de alimentos produzidos perto de casa. Teve um papel importante porque rompeu a Lei da Licitação 866, abriu as portas para o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Estas mudanças significaram o reconhecimento do papel econômico, social, ambiental, desses segmentos de agricultores, o campesinato.
E o que aconteceu com o PAA neste orçamento de 2019?
Maria Emília Pacheco – Deixaram o mínimo, uma modalidade que consegue acolher só a produção do médio produtor para vender a exército e hospitais, diferente das outras modalidades, que acolhia os pequenos para vender a asilos e creches. É bom lembrar também que houve uma criminalização desse programa, uma Operação chamada Agro Fantasma, da Polícia Federal com participação do atual ministro Moro, da Justiça.
Maria Emilia Pacheco – Com alegação de que havia corrupção chegaram a prender camponeses, que depois foram soltos. Eles consideraram crime, por exemplo, a entrega de produtos que não estavam no contrato. Se era para entregar laranja e entregavam um produto análogo porque a terra não tinha dado laranja naquela safra, isto era considerado crime.
A sociedade civil está mobilizada para tentar recuperar o Consea no Congresso?
Maria Emilia Pacheco – As pessoas estão estudando primeiro a proposta do governo. Há, inclusive, o entendimento de que é inconstitucional porque, ao transfigurar a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional eles estão, ao mesmo tempo, ferindo um direito garantido no Artigo 6 da Constituição: o direito humano à alimentação.