Atenção primária e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental

Nos dias 25 e 26 de outubro de 2018, Astana, Cazaquistão, foi palco da Conferência Global de Atenção Primária à Saúde que renovou o compromisso estabelecido 40 anos atrás em Alma-Ata e alcançar a cobertura universal de saúde e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A Conferência está sendo realizada no Palácio da Independência e é co-hospedada pelo Governo do Cazaquistão, OMS e UNICEF.

A Rede de Pesquisa em APS da Abrasco esteve presente com as integrantes do comitê coordenador, professoras Ligia Giovanella (ENSP/Fiocruz) e Claunara Mendonça (GHC/UFRGS) convidadas pela OMS. “Nós do Brasil elaboramos um documento de posicionamento brasileiro para a Global Conference on Primary Health Care, Astana, o distribuímos entre os participantes da América latina na Conferência. A experiência brasileira de nossa atenção primária, a Estratégia de Saúde da Família no SUS, foi mencionada como um exemplo a ser seguido por outros países na mesa de abertura, pelo principal expositor e mais duas vezes, inclusive pelo secretário de saúde da Argentina. O Brasil foi um dos países no mundo que mais rapidamente reduziu a mortalidade infantil na última década” frisa Giovanella. O documento foi elaborado a partir de contribuições de um Grupo de Trabalho composto por pesquisadores da Fiocruz e de aportes da Câmara Técnica de Atenção Básica do Conselho Nacional de Saúde. Confira:

Atenção primária e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental – Posicionamento brasileiro (Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde) para a Global Conference on Primary Health Care, Astana, outubro de 2018.

Sumário executivo

Ao comemorar 40 anos, reafirmamos os compromissos da Declaração de Alma Ata com a justiça social, a saúde para todos e a superação das desigualdades sociais entre países e ao interior dos países. Nestes 40 anos são inegáveis os avanços em prol do direito à saúde, mas se evidenciam novos desafios com a persistência das desigualdades sociais, mudanças demográficas e epidemiológicas, transformações tecnológicas, ameaças ambientais e climáticas.

A Constituição Federal brasileira de 1988, sob inspiração de Alma Ata, reconhece a conexão do desenvolvimento econômico e social e das condições ambientais na determinação do processo saúde-doença e na promoção da saúde. Estabelece “saúde como direito de todos e dever do Estado” com a criação de um sistema público universal de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), que há 30 anos busca cumprir com os princípios de universalidade, integralidade, equidade e participação social.

A atenção primária à saúde, na experiência brasileira, é o coração do sistema universal de saúde. O modelo assistencial da Estratégia Saúde da Família com 41 mil equipes multiprofissionais assiste hoje 130 milhões de brasileiros. Sistemas públicos universais fundados na APS integral, como o SUS, integram cuidados individuais e ações coletivas de promoção e prevenção, cura e reabilitação. Garantem a continuidade da atenção coordenada pela APS, proporcionando o acesso à atenção especializada e hospitalar nos níveis secundário e terciário, conforme necessidades. Seu enfoque populacional exige promover políticas públicas transversais intersetoriais para enfrentar os determinantes sociais e ambientais da saúde.

A experiência de mais de três décadas do SUS, com seus impactos relevantes na melhoria do acesso e na saúde da população nos autoriza a formular as seguintes proposições:
A determinação social da saúde e da doença, enunciada por Alma Ata, tornou-se concepção hegemônica e exige o compromisso político dos governos em assegurar o máximo de bem-estar dos cidadãos, de forma igualitária. O retrocesso em políticas sociais em função do ideário da austeridade econômica representa um custo insuportável para as sociedades, principalmente nos países periféricos, com aumento da pobreza e das desigualdades sociais, piora nas condições sanitárias, corrosão da coesão social, e ameaças de autoritarismo.

A subsunção da APS à proposta de cobertura universal em saúde (UHC) restringe as possibilidades de garantia do direito humano à saúde, conforme definido em Alma Ata. A cobertura de proteção financeira por meio de seguros privados ou públicos não garante acesso e resulta em diferenciação de cestas de serviços conforme renda. Reatualiza a APS seletiva, com seus pacotes mínimos que perpetuam as desigualdades sociais, concepção antagônica à APS abrangente de Alma Ata.

O usufruto do direito à saúde implica na capacidade de compartilhar o poder na gestão do sistema de saúde. Conselhos de Saúde em todos os níveis de governo constituem a arquitetura democrática com base na participação social. A fortaleza desta estrutura participativa institucionalizada se expressa no presente documento, ratificado pelo Conselho Nacional de Saúde do Brasil.

Os novos desafios epidemiológicos e a melhoria da qualidade da atenção exigem investir na formação de profissionais de saúde para atuar na APS, aliando formação clínica para o cuidado individual, e, em saúde coletiva para o enfoque populacional. A garantia de condições materiais com salários justos e direitos trabalhistas no provimento de profissionais para a APS valoriza e confere dignidade aos profissionais, facilita a fixação e a qualidade dos processos de atenção.

A redução das assimetrias globais no campo da CT&I em saúde é fator decisivo para a garantia do direito universal à saúde e ao acesso a serviços de saúde. A construção de complexos produtivos de saúde orientados a responder as necessidades da população, rompe a barreira imposta pelos interesses comerciais que tornam insumos, medicamentos e tecnologias inacessíveis para grande parte dos países no mundo, intervindo nas tendências de comercialização, mercantilização e privatização da saúde.

A saúde não é uma mercadoria, mas um bem de relevância pública. Os sistemas públicos universais de saúde, gratuitos e de financiamento fiscal que têm a APS como o coração da rede de atenção materializam o caminho mais efetivo e eficiente para promover a equidade e garantir o direito universal à saúde, ‘sem deixar ninguém para trás’.

Este documento foi elaborado a partir de contribuições de um Grupo de Trabalho composto por pesquisadores da Fiocruz1 e de aportes da Câmara Técnica de Atenção Básica do Conselho Nacional de Saúde2. Foi aprovado por unanimidade pelo pleno do CNS em 11 de outubro de 2018 (CNS, 2018a).

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