É preciso criar um futuro que se distancie do “cemitério continental” que chamamos de país

Manaus, AM 29/04/2020 – Enterros coletivos no Cemitério N.S de Aparecida no Tarumã em Manaus (Foto: Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real)

 

“Como considerar uma história da pátria no meio desse cemitério continental?”. A frase de Ailton Krenak, no livro “Futuro Ancestral”, refere-se especificamente ao discurso colonial que nega o genocídio dos povos originários. A ideia do país como um cemitério continental reverbera também quando pensamos em outros momentos da construção do Brasil – como a ditadura civil-militar de 1964, ou, mais recentemente, o modo como o Estado lidou com a pandemia de Covid-19, iniciada em março de 2020. 

Nós fracassamos enquanto país, no enfrentamento da pandemia. É a percepção de  Rômulo Paes de Sousa, vice-presidente da Abrasco e pesquisador da Fiocruz, que coordenou a produção do Dossiê Abrasco da Pandemia de Covid-19. O controle da doença foi aquém do que poderíamos – considerando o acúmulo científico e a estrutura e organização do Sistema Único de Saúde – e houve ação deliberada do governo federal, que não mobilizou as competências necessárias. E essa história precisa ser contada. 

As evidências indicam que cerca de 400 mil mortes, das 699 mil que ocorreram em consequência da doença, poderiam ser evitadas se o governo de Jair Bolsonaro agisse para prevenção da doença – como incentivo ao uso de máscaras e vacinação.Em março de 2022, o Brasil concentrava 2,7% da população mundial, e tinha 10,7% das mortes por Covid-19 em todo o mundo.

Disseminação do coronavírus como estratégia política 

Para Sousa, houve uma estratégia política baseada em crise de autoridade, assim como questionamento das instituições democráticas e da ciência. O negacionismo forjou consensos, e esteve presente em todas as etapas: “Construiu falsas narrativas sobre a origem da doença, negou a quantidade de doentes e óbitos – foram até em hospitais para filmar áreas que, supostamente, estavam sem pacientes. Inventaram tratamentos alternativos e ineficazes [como a cloroquina e ivermectina] com estudos científicos de baixa qualidade ou falsificados, e negaram as vacinas”. 

Deisy Ventura é pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, e concentra esforços para combater uma outra faceta deste negacionismo: a ideia de que não houve intencionalidade no desastre. Em 2021, ela foi uma das responsáveis pelo documento que demonstrou uma política deliberada de disseminação do coronavírus no país, por parte do Executivo. A análise de atos normativos da União, como leis e vetos presidenciais, além de outras fontes –  atos de gestão, manifestações oficiais e entrevistas concedidas por autoridades – indica que houve propaganda contra a saúde pública, e que governos estaduais e municipais foram, em muitos casos, impedidos de dar respostas à doença, através de obstrução.

“É preciso lembrar o que aconteceu e responsabilizar as pessoas que estão na origem dessa catástrofe, que não é natural, não é resultado da inaptidão do SUS. Depois de tudo que vivemos, é chocante que o esquecimento avance a passos tão largos “, comenta.  Ela pontua que do ponto de vista jurídico, ético e político, é possível comparar o contexto da pandemia no Brasil com outras situações de violações massivas dos direitos humanos pelo Estado.

Para Ventura, é preciso aprender com experiências anteriores dos processos que são chamados de justiça de transição, e debater a possibilidade de aproveitar mecanismos que já foram utilizados no campo da memória, da justiça e da reparação. “É direito das vítimas saber a verdade e pedir reparação; e é dever do Estado investigar e processar as pessoas responsáveis, e garantir que isso não se repita. Buscar justiça. Mas não há salvaguarda para que não se repita o que aconteceu por aqui, na crise sanitária”

Justiça de Transição

No livro “Justiça de cascata”, Kathryn Sikkink organizou um banco de dados sobre julgamentos de crimes contra os direitos humanos, cometidos em contextos de ditaduras, mas judicializados em âmbito democrático. Na América Latina, ela conclui que  os países que julgaram e puniram militares – como a Argentina – têm mais controle civil sobre o exército. 

No Brasil, não houve  justiça de transição. Passaram-se quase 30 anos até ser instaurada uma Comissão Nacional da Verdade, e a Lei da Anistia, publicada em 1979, é controversa – já que garante a anistia tanto às pessoas que resistiam aos militares quanto aos próprios militares. Para Sikkink, uma das consequências é a alta letalidade da polícia brasileira, que está relacionada à impunidade dos militares que torturaram e mataram milhares de pessoas durante o regime no país.

Enterros de indígenas mortos pela Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira no cemitério Parque da Saudade (Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/09/05/2020)

“Negar a história de um povo tem consequências imprevisíveis”

Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deu entrada em uma ação no Supremo Tribunal Federal a fim de reaver a Lei da Anistia. O argumento é que o Estado não deve perdoar crimes como homícidio, estupro, abuso de autoridade, desaparecimento forçado e lesões – cometidos pelo Estado brasileiro contra os opositores à ditadura militar. 

O STF, no entanto, manteve a anistia a torturadores. Na época, o ministro Gilmar Mendes afirmou: “Esse pacto pacífico é o que nos faz positivamente diferentes em relação aos nossos irmãos latino-americanos,  que ainda hoje estão atolados em processo de refazimento institucional sem fim”. Para Elda Bussinguer, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, essa ideia de “pacto pacificador” desdobrou-se em uma série de acontecimentos –  como o golpe de Dilma Rousseff, o crescimento da extrema direita no país, a eleição de Bolsonaro em 2018 e os atos golpistas de 8 de janeiro. 

“O povo brasileiro não é cordial, foi cordializado para que as violações de direitos continuassem, desde a invasão dos portugueses, com a violação dos corpos indígenas, das pessoas escravizadas. O silêncio é coautor das perversidades e crueldades cometidos. Há um direito à memória e à história, que não poderia ter sido sonegado ao povo brasileiro. Eliminar a memória e a história de um povo tem consequências imprevisíveis”, critica. 

Esquecer por quê? 

Bussinguer acredita que se não houver um esforço para rememorar o horror da pandemia, no futuro é possível que pessoas louvem as pessoas responsáveis pela tragédia, assim como hoje louvam a ditadura e enaltecem torturadores: “Não é possível criar uma história asséptica da dor. A escravidão precisa ser lembrada. A ditadura precisa ser lembrada. A dor da pandemia precisa vir à nossa memória. Os corpos esquálidos dos Yanomamis. Esquecer por quê?” . 

Deisy Ventura sinaliza algumas estratégias possíveis para construir essa memória – para além de punir as pessoas responsáveis.A jurista acredita que é preciso conceber uma política de Memória, Verdade, Justiça e Reparação, em relação à pandemia de Covid-19, assim como discutir a pertinência de uma Comissão Nacional da Verdade. 

Ela sugere memoriais, dispositivos e ações que registrem os nomes das vítimas, e contem suas histórias. Também é necessário rememorar o trabalho dos profissionais de saúde, e a auto organização da sociedade para salvar vidas. Rômulo Paes Sousa afirma que os movimentos sociais exerceram “proteção social informal”, e demonstraram a capacidade das comunidades de produzir soluções quando o Estado está ausente. 

Dossiê Pandemia de Covid-19 

Somando esforços para que a crise sanitária não caia no esquecimento, e que o Estado brasileiro crie mecanismos para impedir que governantes sejam omissos no futuro, a Abrasco lançou o Dossiê Pandemia de Covid-19, no fim de 2022.  O documento aborda aspectos epidemiológicos e políticos da tragédia, e registra a luta da entidade e demais organizações da saúde e ciência para conter o vírus no país. 

Rosana Onocko Campos, presidente da Abrasco, acredita que é preciso  chamar a atenção para as diferentes facetas dessa necessidade de memória e reparação, e pensar em como isso constrói a subjetividade nacional e o imaginário social: “Gosto de acreditar que o povo nos deu a oportunidade de renovar esperança, de inventar um novo presente, e por isso dizemos: anistia não!”.  

No dia 1º de março de 2023, aconteceu o painel “Memória e reparação: anistia não!”. Assista na TV Abrasco:

 

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